MP 873 não suspende desconto das mensalidades sindicais
Em artigo, coordenador de Assuntos Jurídicos do Sindijus diz que MP é inconstitucional.
Publicado: 05 Abril, 2019 - 14h18
Escrito por: Plinio Pugliesi*
A medida provisória antissindical (MP 873/2019) foi promulgada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), no dia 1°de março, sexta-feira véspera do Carnaval. O presidente que se autodeclara opositor dos direitos do povo brasileiro, consolida-se como um governo de ultra-direita, a serviço dos banqueiros e inimigo dos trabalhadores.
A MP 873 altera a contribuição sindical dos trabalhadores celetistas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Também afeta os servidores públicos federais, ao revogar dispositivo do Estatuto do Servidor Público Federal (Lei 8.112/90) que autoriza descontar em folha o valor das mensalidades sindicais. Mas não atinge servidores públicos estaduais e municipais, que são regidos por estatutos próprios, e não altera o desconto em folha de pagamento das mensalidades associativas, exceto no Serviço Público Federal.
A MP tem o objetivo claro de criar embaraços às entidades sindicais, estabelecendo obstáculos à arrecadação financeira e, portanto, à sua própria existência, na tentativa de impedir a resistência da classe trabalhadora contra a destruição da Previdência pública.
Com uma redação ambígua, que mistura contribuição e mensalidade sindical, o texto da MP dificulta a interpretação e abre margem para múltiplos significados. Principalmente em torno da exigência de boleto bancário.
Receitas do sindicato
Os sindicatos têm como receitas a contribuição sindical (art. 8º, IV, da CF e arts. 578 a 610 da CLT), a contribuição assistencial (art. 513, "e", da CLT), a contribuição confederativa (art. 8º, IV, da CF) e a mensalidade sindical (art. 548, "b", da CLT).
A contribuição sindical, até a reforma trabalhista, era devida por todos os integrantes da categoria profissional ou econômica, sindicalizados ou não. Correspondente a um dia de trabalho, descontada da remuneração no mês de março. Com a edição da reforma trabalhista, perdeu o caráter obrigatório e continua sendo aplicada apenas se houver autorização do empregado. A contribuição sindical é prevista na Constituição Federal, na parte final do inciso IV do art. 8º, e na CLT possui um capítulo inteiro dedicado, que compreende do art. 578 ao art. 610. O professor e desembargador Sérgio Pinto Martins, em sua obra, ensina que "A atual contribuição sindical é o antigo imposto sindical. Como imposto, tinha natureza tributária, como espécie do gênero tributo" (MARTINS. Direito do Trabalho, editora Atlas).
A mensalidade sindical, também chamada contribuição associativa, é paga apenas pelos associados ao sindicato, sendo o valor decidido pela categoria no estatuto da entidade ou em assembleia geral. A mensalidade sindical está prevista no art. 548, "b", da CLT, dispositivo diverso da contribuição sindical. O professor e juiz do trabalho Odonel Urbano Gonçalves leciona, claramente a distinção das receitas sindicais. "A contribuição dos associados é outra fonte de receita das entidades sindicais. Não se confunde com contribuição sindical, com contribuição assistencial e com contribuição confederativa. Nenhuma dessas contribuições confundem-se entre si, posto que cada qual tem origem legal e finalidade distintas." (GONÇALVES. Direito do Trabalho para Concursos, editora Atlas).
Alterações da MP 873
A MP 873 interfere em duas leis: a CLT (Decreto-lei 5.452/43) e o Estatuto dos Servidores Públicos Federais (Lei 8.112/90).
A CLT, em regra, regula a relação jurídica dos empregados do setor privado e dos empregados públicos. A Lei 8112 dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais. Os demais servidores públicos, estaduais e municipais, possuem seus regimes jurídicos próprios, regulados nos estatutos elaborados pelos entes federativos a que estão vinculados, Estados e Municípios.
O art. 1° da MP 873 faz alterações em alguns artigos da CLT. Eis as mais relevantes:
- 578: Reafirma a facultatividade da contribuição sindical. O que não é novidade desde a reforma trabalhista (Lei 13.467/17) que acabou com o imposto sindical obrigatório.
- 579-A: Nesse novo artigo, a MP registra o quê pode ser exigido somente dos filiados ao sindicato, listando: a contribuição confederativa; a mensalidade sindical; e as demais contribuições instituídas pelo estatuto do sindicato ou por negociação coletiva. Nota-se que a contribuição sindical não consta nesse rol.
- 582: Aqui é incluída uma novidade na legislação trabalhista, o boleto. Passa a obrigar que a contribuição sindical dos empregados que autorizarem, prévia e expressamente, o recolhimento será feita exclusivamente por meio de boleto bancário ou equivalente eletrônico. Primeiro, nota-se que essa exigência fala de empregado, portanto não se aplica diretamente aos servidores públicos nesse ponto. Segundo, percebe-se também que essa exigência mira na contribuição sindical anual – o antigo imposto sindical – não fala da mensalidade. Para não deixar margem de dúvida, o artigo alterado está posicionado, na CLT, na “Seção I, Da fixação e do recolhimento do imposto sindical.”
O art. 2° da MP ataca a mensalidade, ao revogar esses dois artigos de lei:
- 545, parágrafo único, da CLT: esse dispositivo eliminado estipula uma multa ao patrão que não recolhe as contribuições devidas ao sindicato.
- 240, alínea “c”, da Lei 8.112: essa revogação atinge diretamente os servidores federais, já que esse dispositivo assegurava o desconto em folha do valor das mensalidades e contribuições definidas em assembleia da categoria.
Inconstitucionalidade
Os vícios de inconstitucionalidade formais e materiais da MP 873 são flagrantes. Conforme entendimento que vem sendo consolidado na totalidade das manifestações judiciais que vêm sendo emitidas até agora.
- Inconstitucionalidade formal, porque não há urgência nem relevância nesta matéria, portanto, não atende a esses pressupostos estabelecidos pela Constituição Federal (art. 62, CF).
- Inconstitucionalidade material, porque fere o princípio da igualdade, da liberdade sindical e da autonomia sindical, assegurados também na Constituição (art. 5º, caput; art. 8º, I, III e IV; e art. 37, VI da CF), assim como nas orientações da OIT (art. 5º da Convenção 151). Ao contrário da MP, a Constituição já autoriza expressamente o desconto da em folha de pagamento: "A assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei" (art. 8°, IV, da CF).
A inconstitucionalidade e o risco de danos já vem sendo apontados em decisões, em sede de liminar, em diversos tribunais do país. Para ilustrar, seguem transcritos de alguns dos julgados que têm determinado a suspensão da aplicação da MP:
Ademais, em uma análise perfunctória, própria das decisões proferidas inaudita altera pars, revela-se irrazoável a vedação para que a cobrança de contribuição autorizada pelo sindicalizado ocorra por meio de desconto em folha de pagamento. Logo, considero presente a verossimilhança das alegações e o risco de dano. Assim sendo, defiro o pedido de tutela provisória, para determinar à parte ré que mantenha os descontos em folha das contribuições sindicais mensais devidas ao SISEJUFE pelos sindicalizados. (Procedimento Comum nº 5011868-51.2019.4.02.5101 - 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro)
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A Constituição da República prevê, como direito básico do trabalhador, a liberdade de associação profissional ou sindical, estabelecendo que a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva (art. 8º, inciso IV). Dita contribuição “confederativa”, que nunca teve natureza tributária – já que sua cobrança sempre dependeu de prévia e facultativa filiação do trabalhador a sindicato – não se confunde com a contribuição sindical, prevista na parte final do indigitado art. 8º, inciso IV da Constituição (...independentemente da contribuição prevista em lei) e cobrada apenas uma vez por ano. (...) Sendo assim, há de se considerar presente a probabilidade do direito, bem assim o perigo na demora, fatores que autorizam a emissão do provimento de urgência almejado. Fica, portanto, DEFERIDA A LIMINAR, com a determinação à UFRJ para que mantenha os descontos/consignações em folha das mensalidades/contribuições dos membros do sindicato autor, sem ônus para ele. (Procedimento Comum nº 5011851-15.2019.4.02.5101 - 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro)
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Observa-se, assim, que a razão alegada para se exigir que o pagamento da aludida contribuição seja feito exclusivamente por meio de boleto bancário ou equivalente eletrônico é que o desconto em folha seria um privilégio em prol das entidades sindicais. Qual o privilégio? Se o servidor pode autorizar o desconto em folha de qualquer empréstimo bancário que realizar, inclusive em instituições privadas, assim como também pode permitir o desconto de mensalidade de associação de classe, não há motivo para que, somente em relação às entidades sindicais, o servidor não possa autorizar o desconto em folha. Há, portanto, uma flagrante violação ao princípio da isonomia. Ademais, a própria Constituição Federal no art.8º, IV, estabelece que a contribuição será descontada em folha. 3. Ante o exposto, DEFIRO, EM PARTE, o pleito de concessão da tutela de urgência, a fim de permitir que a cobrança das mensalidades devidas pelos filiados ao sindicato autor seja feita mediante desconto em folha, sem ônus para a entidade sindical, na forma definida em assembleia geral da categoria. (Ação Civil Pública nº 1002535-44.2019.4.01.3300 - 4ª Vara Federal Cível da Bahia)
O escritório LBS Advogados, que advoga para a Central Única dos Trabalhadores (CUT), aponta violações de convenções internacionais e inconstitucionalidade, em nota subscrita pelos advogados José Eymard Loguercio, Fernanda Caldas Giorgi e Antonio Fernando Megale Lopes:
As modificações trazidas pela MP implicam flagrante violação de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, a saber convenções nº 87, 98 e 144. Reforçam esse entendimento várias decisões proferidas pelo Comitê de Liberdade Sindical da OIT, como as abaixo transcritas.
- A questão do desconto de contribuições sindicais pelos empregadores e seu repasse para o sindicato deve ser resolvida pela negociação coletiva entre empregadores e sindicatos em geral, sem obstáculos de natureza legislativa (ver Informe 287º, Caso nº 1683, parágrafo 388).
- De conformidade com os princípios da liberdade sindical, as convenções coletivas deveriam poder prever um sistema de dedução das contribuições sindicais sem ingerência por parte das autoridades (ver Informe 289º, Caso nº 1594, parágrafo 24).
- As questões relativas ao financiamento das organizações sindicais, tanto no que diz respeito a seus próprios orçamentos como aos das federações e confederações, deveriam regular-se pelos estatutos dos sindicatos, das federações e confederações, razão pela qual a imposição de contribuições por meio da Constituição ou por via legal não é conforme aos princípios da liberdade sindical (ver Informe 265º, Caso nº 1487, parágrafo 373).
- Assim, a MP nº 873/2019 revela-se a um só tempo inconstitucional e inconvencional.
Aplicabilidade
Ainda que a MP 873 não tivesse todos os vícios já apontados, que impedem a sua aplicabilidade no setor privado e no Serviço Público Federal, jamais poderia intervir em Sergipe ou nos Municípios, em respeito à autonomia constitucional dos entes federativos. Estes já possuem suas próprias regras regulamentando os descontos em favor das entidades sindicais.
Além disso, a Constituição Estadual de Sergipe, no art. 25, inciso V, reforça a liberdade sindical, no Estado e nos Municípios. Assim sendo, consequentemente também reafirma o desconto em folha previsto no inciso IV do art. 8°, já retro descrito:
Art. 25. A administração pública, em todos os níveis e de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, estruturar-se-á e funcionará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, transparência, razoabilidade, publicidade, eficiência e ao seguinte:
(…)
V - é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical, observadas as disposições contidas no art. 8º da Constituição Federal;
O advogado Lucas Rios, integrante do escritório Advocacia Operária, em consulta solicitada pelo Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário de Sergipe (Sindijus), corrobora que a MP é inconstitucional e arremata que a exigência do boleto refere-se ao imposto sindical e não se aplica a servidores estaduais e municipais.
O conjunto normativo trazido pela MP nº 873/2019 contraria a Constituição Federal, bem como as normas internacionais que vinculam o Estado brasileiro, visto que viola a liberdade e a autonomia sindicais, bem assim afronta diretamente a disposição expressa do inc. IV do art. 8º da Constituição, que garante o desconto em folha da contribuição sindical definida em assembleia da categoria profissional. Outrossim, ainda que não fosse escancaradamente inconstitucional, a MP não autoriza a adoção do procedimento previsto no art. 582 da CLT às diversas modalidades de contribuição sindical, à exceção do imposto sindical, visto que a norma se refere apenas a esta modalidade não àquelas. Por fim, a MP não se aplica aos servidores públicos estaduais e municipais estatutários, posto que regidos por regimes de direito administrativo próprios.
Conclusão
Antes de tudo, a MP 873 é inconstitucional. Portanto, a melhor medida é a sua suspensão até definição no Judiciário ou Congresso Nacional.
Ainda que a MP fosse constitucional, o seu raio de alcance afetaria diretamente os servidores federais, quanto à mensalidade; e os trabalhadores celetistas em relação à contribuição sindical anual.
Com relação ao desconto consignado da mensalidade, a MP não suspende nem exige boleto de nenhum sindicato, celetista ou estatutário. O boleto não é exigido nas mensalidades e sim na contribuição sindical, o antigo imposto sindical anual.
Em nenhum caso, seja a mensalidade sindical ou a contribuição sindical (antigo imposto sindical) a MP não pode afetar os servidores estaduais e municipais que tenham legislação própria regulamentando as consignações. Em respeito à autonomia constitucional dos entes federados.
Na prática, atualmente as Administrações Públicas viabilizam o desconto da mensalidade na folha de pagamento. E assim devem continuar, exceto nos casos de desinformação ou má-fé dos gestores. Caso essa intervenção aconteça, o sindicato deve comunicar à gestão a falta de amparo legal para a supressão do desconto: seja porque a MP é inconstitucional; seja porque, mesmo que fosse válida, não proíbe descontos em folha das mensalidades. O requerimento pode ser, a princípio pela via administrativa. Se não houver consenso, restará a judicialização da demanda para requerer o restabelecimento dos descontos e a consequente responsabilização do gestor que causar tal dano ao sindicato.
* Plinio Pugliesi é servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, coordenador de Assuntos Jurídicos do Sindijus/SE e vice-presidente da CUT/SE.